domingo, 22 de abril de 2012

Prisão Perpétua, Liberdade Garantida


E dentro de mim acordo preso.
À minha volta nada escuto.
Berro, grito, mas não me ouço.
Vejo apenas quatro paredes, um chão e um teto com um buraco.
Não me enxergo.
Será que existo mesmo?
Serei eu apenas fruto da minha imaginação?
Sinto que estou aqui por uma vida inteira, pois não me recordo de tempos de liberdade.
Não há mais ninguém, não há mais nada.
Não vejo saída.
Não há saída.
Passam-se luas e mais luas pelo buraco no teto de meu cativeiro, pelo buraco em mim.
Acompanho sua luz, dançando sempre a mesma valsa, vagarosa, de um lado ao outro no chão.
Iluminado por sua frieza, por sua indiferença, me dou conta de que se a lua está lá fora, então existe um lá fora.
Me animo com a ideia da tão famigerada liberdade.
Minha esperança quase chega a tocar a face da lua, que nem sabe que existo.
Tento em vão alcançar a janela de meu cativeiro, que nada mais é do que um quadrado no teto onde não há nada, apenas um buraco.
Rio de mim mesmo e da ideia de que minhas esperanças se apoiam totalmente no nada, na ausência de algo.
Porém, a parede é lisa demais, não consigo escalá-la.
Minhas pernas, exaustas, nem descansadas conseguiriam me impulsionar o suficiente.
Apenas relo o teto com a ponta dos meus dedos.
Sinto como ele é áspero e frio.
Ás vezes acho que consigo sentir seu contentamento com minhas tentativas vãs de alcançá-lo.
E assim, exausto, derrotado, vejo minha esperança minguar e murchar até se tornar tão pequena quanto a menor partícula do Universo.
Partícula que não vejo, mal sinto, mas sei que está lá, passeando pelo chão, de mãos dadas com a luz da lua.
E eu, permaneço ali, preso dentro de mim, olhando para o nada, para o buraco no teto.
À espera de um olhar, de um toque, um sussurro, um beijo.
Algo que me liberte, ou que ao menos me dê vida, até que adormeço, esperando ao menos sonhar com dias melhores.
E preso acordo uma vez mais.
As mesmas paredes.
O mesmo chão.
O mesmo teto.
O mesmo buraco.
Porém é dia, a luz do Sol me banha a pele, afastando o frio e a tristeza, que outrora me consumiam.
Com o Sol, novas cores ganham vida.
Chego a perceber nuances nas paredes cinzas.
Pelo buraco, enxergo, com esperança renovada, o azul do céu e o branco esfumaçado das nuvens.
O clima fica mais leve.
) ar fica mais leve.
Eu fico mais leve.
Ao contrário de Ícaro, o Sol parece me acolher e me dar asas.
E cada vez mais leve, pareço flutuar.
E quando me dou conta, passei pelo buraco!
Escapei de meu cativeiro!
Estou livre de mim mesmo!
E livre voo, como um falcão, sentindo o ar passando pelo meu corpo, eriçando cada pelo, cada pena, cada canto de mim.
A brisa leve, me acaricia o rosto como uma sereia, sentada na beira de um lago.
Lago no qual mergulho de cabeça sem receios, sem anseios.
Cercado por completo pela água morna, banhado apenas pela lembrança do útero, me deixo ficar por um tempo.
Mas não muito tempo, pois ainda há mais o que fazer, há mais o que viver, há mais o que ser.
E assim saio do lago.
E renovado, faço, vivo, sou.
Mas não para sempre.
O Sol já já se pôs e logo, um torpor toma conta de mim.
Adormeço.
E acordo de volta à minha cela, onde me sinto seguro, onde sou tudo, onde não sou ninguém.
E assim sigo, alternando o quente e o frio, o alegre e o triste, em uma vida simples, tranquila, porém complicada e turbulenta, uma vida, enfim, plena.

Um Ovo

Um ovo. Nada mais que um ovo. Por fora, um ovo. Por dentro, um ovo. Tudo o que deveria compor um ovo está ali. Para o ovo, tudo está como deveria. Ninguém sabe em que estágio de desenvolvimento o ovo está, pois não se consegue ver dentro dele. Muito menos o ovo, que apenas está em algum lugar, em alguma situação qualquer, sendo alguma coisa. Cada ovo é diferente, composto das mesmas coisas em diferentes proporções, mas são ovos mesmo assim. Para qualquer ovo, os outros ovos são iguais entre si e iguais a si. E por que pensar diferente? Tudo o que se vê é um ovo. De repente, algo muda. Uma luz, no topo da casca. Parece uma rachadura. Difícil dizer se é algo natural ou algo provocado por um fator externo. O fato é que algo mudou. A luz apareceu. De repente o ovo não é mais um ovo como outro qualquer. É um ovo rachado. Aparentemente nada grave, mas todos sabem que o ovo mudou. Será que ele evoluiu? Será que ele estragou? Será ele ainda é um ovo? Afinal, o que é um ovo? Diante de todos estes questionamentos distraindo o ovo, povoando seus pensamentos, ele não percebe a sequência de eventos sucessivos à rachadura inicial. E quando ele menos percebe, virou um omelete.

Onde Estou?


Estou longe de me encontrar.
Em dias bonitos, com a ajuda do sol, vejo ao menos minha sombra.
Um resquício de mim, a prova cabal de que aqui estou ou pelo menos que aqui posso estar.
Sem as distrações dos reflexos de um espelho, sem meu ego para me iludir, para me enganar.
Apenas eu, na imperfeição da forma, na perfeição do universo.
Me percebo na totalidade do ser e do estar sem nada específico para ser, nem nenhum lugar especial para estar.
Mas são em noites escuras, sem a lua a me guiar, sem minha sombra pra me confortar, que lembro que o que vejo nada mais é do que uma parte do todo.
A visão nada mais é do que uma bengala, que nos vicia a esquecer de sentir para apenas ser.
Ser apenas uma imagem, um avatar, uma máscara.
Mas assim mesmo, sem me ver, ali estou, ali sou.
Sou nada, sou ninguém, e tudo está bem.
Sou tudo com todos e sou nada com ninguém.
Nem melhor e nem pior, apenas imperfeito da forma mais belaque a vida pode nos proporcionar para que desfrutemos dela, sempre que conseguirmos nos lembrar que sentir também é ser.

Brinquedo Quebrado


Ah! Coitado do brinquedo quebrado. O que há de errado com ele? Parece normal. Mas todos sabem, quem o vê logo percebe, há algo errado, algo diferente, talvez algo inerente.
Ele já teve seu auge, já esteve no topo. Costumava ser a primeira escolha do dia, antes da TV, antes da bola, algumas vezes antes até do que o lanche da tarde. Antes do que o lanche da tarde...Poucos conseguem tal honra, talvez o maior triunfo, o maior sonho de qualquer brinquedo. Quem não gostaria de ser escolhido no lugar do leite achocolatado e do pão com manteiga?
Agora, no entanto, apenas ocupa espaço na estante de madeira, juntando poeira, olhando pro resto do quarto, junto com todos os outros brinquedos. Esquecido, gasto, quebrado.
Passa o dia todo olhando para o cômodo, imóvel e impotente, carente, descrente. Conhece, ou pelo menos acha que conhece, cada detalhe do lugar. O tapete tem uma mancha de sorvete de chocolate. O lixo foi trocado no dia anterior. Tem uma moeda caída debaixo da cama há meses. A janela está emperrada. A tomada ao lado da cama não funciona. Nada lhe escapa. Anota cada modificação, cada sinal de mudança, pois nada mais lhe resta. Apenas esperando o dia da limpeza, temendo o dia em que não mais terá nem valor sentimental o suficiente para ficar ali, onde qualquer outra coisa poderia estar.
Ele teme, mas no fundo se recusa a acreditar que seja descartável. Ele se acha importante, não é igual aos outros brinquedos, o quarto em que se encontra não é a mesma coisa sem ele. O quarto não é perfeito, algumas vezes é até meio estranho, apresentando cada vez mais defeitos, menos tomadas funcionam, o ventilador já não mais circula o ar, o papel de parede está desbotado, existem cada vez menos brinquedos.
Mas ele, ele é especial, ele é único, ele acredita cegamente nisso, ele tem plena consciência. Afinal, muito já se passou no quarto desde que ele se lembra e ele continua lá. As paredes já foram pintadas, a porta já foi trocada, o berço foi substituído por uma cama, o carpete foi retirado, mas ele, ele sempre esteve lá. Sem ele o quarto vai perder a identidade. Sem ele o quarto não tem sentido. Sem ele o quarto não tem importância. Sem ele, o quarto simplesmente não existe.
Ah! Coitado do brinquedo quebrado, quebrado e iludido, preso na própria megalomania. aprisionado na própria consciência. No fim das contas, ele não é e nunca foi insubstituível, O quarto pouco se importa com ele, sem ele o quarto continuará a existir, sem ele o quarto ainda terá outros brinquedos, outros quadros, outros móveis, outras pinturas de parede, outras portas, até que a casa inteira não mais seja.
Ah! Coitado do brinquedo quebrado, no topo da evolução, com o milagre da consciência na mão, egocêntrico e iludido o brinquedo acabará por ser extinguido.
Ah! Coitado do Homem, quebrado, incompleto, lindo. Imperfeito, descartável, inigualável. Destrutivo, indiferente, solidário. Carente, emotivo, afetivo. Inconsequentemente consciente, mas não eternamente.
Ah! Coitado do Homem.

Gladiadores


Rolando na grama, ele parece não se importar. Na verdade parece delicioso. Penso em me juntar a ele, mas não quero perder minha compostura.
O Sol vai alto no céu, castigando todos que ousam desafiá-lo. Nenhuma nuvem à vista, sinal de que o jogo vai ser exaustivo. O ar, quente e parado, me fazem perceber que esse não é o dia ideal para o que está prestes a acontecer.
Ele se levanta e corre em minha direção, fico ansioso pois ele se aproxima cada vez mais rápido.
Quanto mais perto, maior a tensão, me imagino caindo de costas no chão, me lembro de outras ocasiões em que isso ocorreu, não foram muito agradáveis.
Me agacho, esperando o pior, a adrenalina aumentando em minha circulação. Mas ele se desvia no último segundo, demonstrando uma habilidade que eu já não possuo há alguns anos.
Sou jovem ainda, me parece ridículo dizer: "quando eu tinha 19 anos...". Mas infelizmente essa é a pura verdade, se não me alongo antes de cortar cebolas hoje em dia, fico moído, destruído, inútil, por um bom tempo.
Mas nunca desisto, afinal, uma vez viciado em endorfina e adrenalina, é difícil largar o jogo. Conhecendo seu próprio corpo e suas limitações, pode-se fazer quase qualquer coisa. Inclusive desafiá-lo. Há sempre uma chance.
Mas a idade pesa, ele é inalcançável, por isso preciso recorrer à experiência, à malandragem. Tomo as rédeas da brincadeira, coloco o jogo em um terreno estratégico, conhecido, cheio de obstáculos, onde minhas desvantagens diminuem, aumentando minhas chances de vitória.
A batalha fica mais acirrada, ele parece não perceber as mudanças. Ledo engano, ele também é inteligente, se adapta às novas condições e, rapidamente, está em vantagem de novo.
Agora meu tornozelo começa a demonstrar sinais de fraquezas, acumuladas durante uma vida toda. Cada vez mais cansado, percebo que o jogo está próximo do fim. Ele segue incansável, persistente, quase insensível, desrespeitoso, sem levar em consideração as condições de seu oponente.
Finalmente, em um momento de distração, ele tira proveito de sua agilidade e me leva ao chão. Exausto, decido que está na hora de terminar o jogo.
Um jogo no qual não há perdedores, só ganhadores.
Neste momento, meu corpo inteiro está coçando, maldita seja a verde e sagrada grama. Declaro o fim do jogo, aviso meu oponente que tudo acabou, que está na hora de voltar para casa. Ele me olha desapontado, pensa em resistir, ele quer mais, poderia fazer isso por muito mais tempo.
Mas eu sou o mais velho, eu sou o mais experiente, eu decido quando o jogo começa e quando o jogo termina, essa parece ser minha única vantagem.
Inconformado, ele é obrigado a acatar minha decisão, sendo assim, coloco a coleira de volta no Chorão e vamos para casa. Eu preciso de um banho, e ele de muita água.

Uma Viagem, Um Sonho


Paris, França. Um turista qualquer, em um café qualquer. Enquanto bebe seu café, lê, com a ajuda de um dicionário de Inglês-Francês um livro de poesias francesas de seu pai, Marcus, falecido há exatamente um ano. A viagem, uma homenagem, passa pelos mesmos lugares que  seu pai passara anos antes de seu nascimento. Com dificuldade, graças a um francês limitado, ele aprende do dicionário o suficiente para saborear as sutilezas contidas nas páginas do livro, que não é de nennhum autor famoso, é apenas um conjunto de poemas franceses dado ao seu pai por um amigo qualquer.
O café, longe de ser um local badalado de Paris, se mantém com certo movimento, de alguns turistas perdidos, mas principalmente de pessoas locais. O garçon, nada amigável, xenófobo, só quer que o alienígena termine e vá embora. Na calçada, dezenas de pessoas passam alheios ao leitor, e este continua sua árdua leitura, alheio às pessoas.
Mas é durante um pequena pausa, durante um gole no café, um tanto quanto convencional, que ele a vê. Com um vestido azul escuro, que se confunde com o ambiente. Mesmo assim ela lhe chama a atenção, nem ele sabe direito o porque. Ela vem andando a passos rápidos em sua direção e logo passará por ele, como todos os outros que vem e vão sem notar o estrangeiro. E assim acontece. Ela logo passa, e ele sente seu cheiro. Algo parecido com uma mistura de rosas envelhecidas e mato recém cortado. Um comichão em seu estômago, seus braços e pernas formigam, seus olhos chegam a revirar nas pálpebras pelo breve segundo em que fechou os olhos para melhor apreciar a essência. O cheiro mais inebriante que já sentira. Ele precisa fazer alguma coisa, fica inquieto, os segundos que passam parecem uma eternidade torturante. Só de imaginá-la se afastando sem pelo menos um contato, uma tentativa, uma aproximação lhe corroe as entranhas de um modo intenso, nunca antes sentido. Ele decide abordá-la.
Quando ela já está a meio quarteirão de distância, ele corre em sua direção e entra em sua frente de forma brusca, impensada e a assusta:
- Speak english?
Refeita do susto, ela acena que não com a cabeça e torna a caminhar, decidida, em passos rápidos. Ele a segue, e mais uma vez torna a entrar em seu caminho. Entra em desespero e tenta lembrar algo das aulas de francês que teve na época do colégio. Alguma lição de conversação básica, qualquer coisa. Ela olha para ele de forma desdenhosa, quase raivosa, mas vê algo diferente em seus olhos, diferente de um turista qualquer, uma insegurança, uma inocência que lhe desperta certa simpatia. De repente ele se lembra de algo:
- Je suis desolé, je ne parle pas français, mais vous êtes la plus belle fleur et parfumé que j’ais jamais vu.
Ele se sente ridículo, não sabe se conseguiu passar a mensagem direito, se condena, toma consciência de que é apenas mais um turista incomodando uma garota qualquer em qualquer rua de Paris.
Enquanto isso, o garçon, tendo notado sua ausência presume que ele é mais um desordeiro, provavelmente mais um Americano querendo contar vantagem aos seus amigos dizendo que fugiu sem pagar de um Café Francês. Ao localizá-lo, corre em sua direção e agarra-o pelo braço gritando e arrastando-o de volta para o café. Ele, derrotado, apenas se deixa levar. De volta ao café, senta-se novamente na mesa e tenta explicar ao garçon, que contrariado, o deixa permanecer no local. Ainda aturdido, ele penas olha para frente, o livro na mesa, aberto em uma página com um poema qualquer, que ocupa apenas meia página. No resto da folha, uma curta nota, escrita à caneta, dedica este poema à seu pai.
Ele está quase voltando ao normal quando sente o cheiro indistinguivelmente marcante uma vez mais. Ela se senta na cadeira à sua frente. Ele nada consegue falar, apenas olha para ela, incrédulo. Ela sorri, lhe diz que fala inglês, lhe chama de maluco. Seu nome é Maxinne. Ela olha para o livro na mesa, fala qualquer coisa sobre gostar de poesia, chama o garçon e pede um vinho. O garçon, com olhar de dasaprovação lhe atende o pedido.
A conversa agora flui de forma intensa, rápida. A cada palavra dita ambos se sentem mais leves, quase bêbados, talvez seja o vinho, não sabem ao certo. Quando percebem, horas se passaram e o café está para fechar. Pagam a conta. Ele se oferece para acompanhá-la até sua casa, quer ter certeza de que ela chegará bem. Ela aceita a oferta. A conversa segue descontraída, incessante, mas nenhum dos dois sabe ao certo sobre o que falam, nenhum dos dois consegue prestar atenção na conversa, apenas conversam, sem parar.
Quando chegam à frente de um prédio qualquer, igual a quase todos na rua, ela anuncia que chegaram, que é ali que ela mora. Ele, desejando que ainda fosse dia, que pudessem conversar mais, sabe que não conseguirá dormir a noite toda, sonhando em estar com ela, em viver ela, em apenas ser com ela e a pergunta se podem se encontrar no dia seguinte, seu último em Paris. Ela o convida para entrar. A noite segue seu rumo natural, como num sonho, a conexão entre os dois se torna densa, quase palpável, mágica.
O dia seguinte segue a mesma receita, único. Com ela como guia, vão aos lugares mais bonitos de Paris, lugares praticamente desconhecidos por turistas, reservados aos Parisienses. Jardins floridos, grama e copas de um verde tão intenso quanto o vermelho provocado nas nuvems pelo pôr do Sol. Um piquenique perfeito, no local perfeito, com a mulher perfeita. Mais um dia perfeito.
De repente são abordados por uma senhora. Uma cigana. Ela não fala inglês, então Maxinne se encarrega da tradução. A cigana pega a mão dele, lhe diz que seu nome é Marcus, ele sorri, sabe que não, mas não a desmente. A cigana fala que os dois estão destinados a ficarem juntos, que estava escrito nas estrelas que eles se encontrariam, que casariam e teriam três lindos filhos, que seriam felizes enquanto estivessem juntos. Ele apenas sorri, cúmplice, e ouve a velha senhora de forma afetuosa. Bem no fundo, uma tristeza o assola, ele sabe que isso não acontecerá, ele sabe que terá de voltar. Ela também sabe disso. Deseja diferente, deseja a eternidade ao lado dele, sem nunca ter-lhe perguntado o nome. A cigana vai embora. O dia também. Um clima de tristeza e melancolia toma o ambiente, a nostalgia do presente de poucas horas atrás chega a ser insuportável. O momento que ambos evitavam pensar chegara. Eles se olham, tristes em ter de se separar, mas felizes por terem vivido um ao outro. Sabem que nunca mais se verão, mas que sempre estarão juntos, ligados por um verdadeiro amor, de dois dias, separados por um mundo, porém juntos pela memória e pela magia. Um amor impossível porém realizado, efêmero porém eterno. Ele sempre terá sua Maxinne, e ela sempre terá seu Marcus.

Um Bar, Um Dilema


Tudo vai bem, na mesa o que se nota é a alegria da pura descontração.
Uma porção de risadas aqui, uma travessa de piadas de mal gosto ali. Tudo vai bem.
O mundo, por um momento parece perfeito, resumido à mesa onde, de vez em quando, um ser abençoado aparece trazendo mais uma garrafa de risos ou algumas doses de gargalhadas. Tudo vai bem.
De repente, o mundo se torna um pouco maior.
Um olhar cruzado.
De repente as risadas soam forçadas, as risos se tornam apenas risos. A atenção já não mais se concentra no futebol, que rola solto na mesa, mas sim naqueles olhos, que agora olham para outra direção qualquer.
Introspectivo, sorridente, perturbado.
O copo vai aos lábios mais uma vez, servindo alegria e conforto, e logo tudo vai bem. Aqueles olhos não mais sombreiam a mente. Tudo está perfeito de novo.
Até que os olhares se encontram mais uma vez. E mais uma vez o mundo desaba, tudo se torna nada e nada vai bem.
Será coincidência? Será que se engana, se pune por beber do Universo?
Anseios e inseguranças agora poluem a mente, já afetada pela existência. Revolta. Essa sociedade machista...Por que o homem que deve tomar ação? Homem ou homem? A existência, o ser, o estar, quase o derrubam de sua cadeira. O que fazer agora?
Melhor não fazer nada, melhor fingir que não aconteceu nada. Melhor nada, mas nada é feito. O jeito é tentar esquecer que aconteceu, afinal, até esse ponto o que realmente aconteceu? Nada.
A atenção volta para a mesa, onde ele reina entre reis, acompanhado, absoluto, só. Onde ele não se questiona, não se avalia, não se mede, não é melhor e nem pior que fulano ou cicrano em sua zona de conforto, seguro, patético.
A ressaca moral, a memória da derrota, da covardia, o destroem por dentro tanto quanto a cachaça barata, que deixa resíduos que permanecerão em seu sistema por um bom tempo.
O que deu errado dessa vez? Em outras ocasiões, a ponte foi erguida com tanta facilidade...Por que agora então a dificuldade?
Consciente do processo inteiro, a mente se entrega, exausta, à saída mais simples no momento, uma porta que nunca está trancada, que mal fica fechada.
Ao atravessar o batente, acorda em sua mesa, onde tudo vai bem...

O Segredo Da Vida


Passei a vida correndo atrás do Sol.
Talvez se o dia não terminasse, eu viveria para sempre, e junto comigo todas as pessoas que eu amo viveriam para sempre.
Assim passava meus dias, acompanhando-o de um lado ao outro do mundo, e, mesmo sempre sabendo qual seria seu caminho, nunca consegui apanhá-lo de fato. Porém nunca parei de tentar, gastei todas as minhas energias atrás da energia eterna, da imortalidade. Até que não pude mais. Meu corpo não mais me obedecia, meu corpo não mais me pertencia. Não era mais de mim que ele tirava energia. Assim percebi que minha vida se extinguía.
Um dia, em meu leito de morte, logo pela manhã, bem cedinho, o Sol veio me visitar dizendo que finalmente me alcançara e que tinha uma mensagem para mim.
Passamos o dia inteiro conversando sobre a vida. No final da tarde, antes de partir, ele olhou para trás e me contou o segredo da felicidade.
E quando ele se foi, tudo escureceu....

A Vida, Por um Trem

Um pequeno trem sai da estação. Sai contente, pois pela primeira vez segue sozinho.
Sem peso e sem cargas, leve segue adiante, veloz, ansioso para chegar à próxima estação.
Sem pensar em quando ou onde será a próxima parada, segue certo de que ela estará lá. E lá ela está. Indiferente ao pequeno trem que nela pára. Ele é apenas mais um no longo dia. E lá, na estação, um vagão é preso ao pequeno trem que logo segue adiante, pois logo outro trem chegará para ocupar seu lugar.
E o pequeno trem segue adiante mais uma vez, sempre andando na trilha, nunca se desviando, sempre rumando para seu destino.
A cada nova parada, outro vagão é preso ao pequeno trem, que com cada vez mais cargas segue cada vez menos leve, menos contente e menos ansioso para chegar à próxima estação.
Mas mais uma vez la está ela. E mais uma carga é presa ao pequeno trem, que agora segue lento, pesaroso, cabisbaixo, cansado, imaginando se sempre haverão mais estações, se sempre lhe prenderão mais cargas, se sempre conseguirá levar as cargas, cada vez mais pesadas.
Porém, agora que segue devagar, o pequeno trem começa a reparar na paisagem, nos lugares por onde passa, montanhas, florestas, lagoas...
Agora que segue devagar tem tempo para ouvir os sons do caminho, bem diferentes do som de suas rodas no trilho, de seu motor, sempre no mesmo ritmo.
Agora que segue devagar, consegue sentir o trepidar de suas rodas no trilho, consegue sentir os declives no caminho que lhe proporcionam uma gostosa sensação de frio na barriga, consegue sentir o ar, deslizando sobre seu corpo enquanto segue em frente.
Agora que segue devagar, segue com mais calma e percebe que sua carga parece mais leve, pois se sente mais leve.
Agora que segue devagar, o pequeno trem percebe o pequeno trem, sente o pequeno trem, gosta do pequeno trem.
E agora o pequeno trem voa pelos trilhos, livre do peso, pois não mais se preocupa com a próxima estação ou com as cargas que carrega e sim com o que vive pelo caminho.
Agora o pequeno trem é novamente apenas um pequeno trem.

Tempos Modernos

O maior prédio da cidade. No último andar. No maior escritório, a janela panorâmica vai do chão ao teto, de uma parede à outra. 
Quase se vê a cidade inteira, ou pelo menos o mar de arranha-céus até aonde a vista alcança e a fumaça permite. 
O olhar, fixo em um dos poucos pontos onde ainda se pode enxergar o horizonte. 
O corpo, sentado na cadeira de couro, de costas para a mesa, lotada de papéis, onde uma campainha toca, incessantemente: BEEP, BEEP!!.....Inaudível. 
O terno, justo e quente, compensa o ar condicionado, sempre frio e alheio a todo o resto. 
A gravata aperta-lhe o pescoço, chegando a quase lhe faltar ar, lembrando-o do trabalho a ser feito. 
Os sapatos, impecáveis e imponentes, relembra aos outros quem é o chefe, pois quando estes se olham no espelho, veem Louis Vuitton gravado em suas testas. 
A mente, viaja para longe, sem jatos particulares e nem helicópteros. Para onde o cheiro de orvalho na grama fresca se mistura ao odor característico de esterco. 
Os olhos fechados ajudam a captar o perfume sutil e inebriante da liberdade, do nada. 
Ao fundo, um som de cascos de cavalo se aproxima e se mistura ao farfalhar de folhas, ao zumbido de abelhas e ao canto dos pássaros. 
No céu, o Sol, eterno, viaja descendo em direção ao horizonte, como que fugindo do calor frio da Lua, que o persegue de forma obsessiva, quase religiosa e desesperada, mas sempre um passo atrás. 
O som dos cascos agora se sobrepõe aos demais: 
- Vem menino, a janta está servida.
 - Já vou, só vou voar mais um pouco. - diz o menino, enquanto uma leve brisa lhe beija a face. 
Um sorriso quase involuntário, cúmplice, lhe brota nos lábios. Um frio na barriga lhe dá a impressão de estar em queda, livre. 
A completa e total certeza do nada lhe toma a mente por um breve momento, tudo é preto, tudo é branco e tudo é nada. 
O coração palpita, cada vez mais acelerado, cada vez mais pesado: TUM, TUM!! TUM, TUM!! BEEP, BEEP!! BEEP, BEEP!! 
De repente, corpo e mente são um só, mais uma vez. 
Talvez mais corpo do que mente. 
Talvez só um corpo que mente. 
Mente para si, mente sobre si, mente em sua mente. 
O ar frio o afeta, a gravata lhe aperta o pescoço, e a consciência, por pouco esquecida, separada da existência, desperta. 
O show tem que continuar, já não há mais tempo para sonhos ou devaneios, nem alegria, só receios. 
As cortinas se fecham, bloqueando os poucos raios do Sol que vencem a densa fumaça. 
A luz artificial, fabricada, ilumina a mesa de carvalho, onde pilhas de papéis esperam ansiosamente por rabiscos de uma caneta tinteiro. 
Sem os rabiscos, esses papéis nada valem, nada são além de lixo, num mundo onde o homem não mais é criança, num mundo onde a janta não será servida se os papéis não forem assinados pelo menino que não voa mais...

O primeiro pensamento

O homem se desmistifica quando se explica
Acha que simplifica, mas se complica
O homem está distante do Homem.
Procura fora de si o Universo,
quando deveria fazer o inverso
Não estamos no Universo mais do que o Universo está em nós
Olhamos para frente, buscando a hora em que teremos o agora.
Para isso, tudo se explora e o futuro se namora.
Enquanto isso, hoje, aqui, a criança chora.
Essa busca é eterna, mas não é externa e sim interna.
A expansão da atividade e da cidade evocam em nós a animosidade
Onde fica a bondade, a simplicidade, a racionalidade?
Vão-se embora em consequência do milagre da consciência?
O que somos nós Humanos senão animais mundanos?
O que somos nós Humanos se só nos mecanizamos, matamos, nos evitamos?
Somos teimosos, orgulhosos por sermos os Poderosos, sendo sobretudo danosos.
Achamos que isso é o certo, que nós somos espertos.
Tudo é objeto, quem se importa com o dejeto, sempre longe, nunca perto.
Tudo é manipulável, é negociável. A natureza é controlável.
Mas isso não é verdade, a Terra precisa da nossa humanidade.
De sustentabilidade, de solidariedade e de sociabilidade.
Não atrás de um televisor, de uma chat em um monitor, de um jogo coletivo no computador.
Mas sim de um abraço acolhedor, um beijo aquecedor, um aperto de mão assegurador, um olhar animador.
A mudança no processo não remete a um retrocesso, mas sim a um progresso, rumo à unidade com o Universo.
A tecnologia é fria, não pode ser nossa guia, mas sim uma ferramenta, que nos auxilia a aproveitar um belo dia.
Não precisamos voltar à idade das cavernas, mas também não podemos rumar ao tempo das trevas.
Que não sejam desconsiderados estes versos simplificados, pois seus significados apenas buscam resultados há tempos famigerados.
Quem sabe assim então, prosperaremos em união, iluminados pela razão.