domingo, 22 de abril de 2012

Brinquedo Quebrado


Ah! Coitado do brinquedo quebrado. O que há de errado com ele? Parece normal. Mas todos sabem, quem o vê logo percebe, há algo errado, algo diferente, talvez algo inerente.
Ele já teve seu auge, já esteve no topo. Costumava ser a primeira escolha do dia, antes da TV, antes da bola, algumas vezes antes até do que o lanche da tarde. Antes do que o lanche da tarde...Poucos conseguem tal honra, talvez o maior triunfo, o maior sonho de qualquer brinquedo. Quem não gostaria de ser escolhido no lugar do leite achocolatado e do pão com manteiga?
Agora, no entanto, apenas ocupa espaço na estante de madeira, juntando poeira, olhando pro resto do quarto, junto com todos os outros brinquedos. Esquecido, gasto, quebrado.
Passa o dia todo olhando para o cômodo, imóvel e impotente, carente, descrente. Conhece, ou pelo menos acha que conhece, cada detalhe do lugar. O tapete tem uma mancha de sorvete de chocolate. O lixo foi trocado no dia anterior. Tem uma moeda caída debaixo da cama há meses. A janela está emperrada. A tomada ao lado da cama não funciona. Nada lhe escapa. Anota cada modificação, cada sinal de mudança, pois nada mais lhe resta. Apenas esperando o dia da limpeza, temendo o dia em que não mais terá nem valor sentimental o suficiente para ficar ali, onde qualquer outra coisa poderia estar.
Ele teme, mas no fundo se recusa a acreditar que seja descartável. Ele se acha importante, não é igual aos outros brinquedos, o quarto em que se encontra não é a mesma coisa sem ele. O quarto não é perfeito, algumas vezes é até meio estranho, apresentando cada vez mais defeitos, menos tomadas funcionam, o ventilador já não mais circula o ar, o papel de parede está desbotado, existem cada vez menos brinquedos.
Mas ele, ele é especial, ele é único, ele acredita cegamente nisso, ele tem plena consciência. Afinal, muito já se passou no quarto desde que ele se lembra e ele continua lá. As paredes já foram pintadas, a porta já foi trocada, o berço foi substituído por uma cama, o carpete foi retirado, mas ele, ele sempre esteve lá. Sem ele o quarto vai perder a identidade. Sem ele o quarto não tem sentido. Sem ele o quarto não tem importância. Sem ele, o quarto simplesmente não existe.
Ah! Coitado do brinquedo quebrado, quebrado e iludido, preso na própria megalomania. aprisionado na própria consciência. No fim das contas, ele não é e nunca foi insubstituível, O quarto pouco se importa com ele, sem ele o quarto continuará a existir, sem ele o quarto ainda terá outros brinquedos, outros quadros, outros móveis, outras pinturas de parede, outras portas, até que a casa inteira não mais seja.
Ah! Coitado do brinquedo quebrado, no topo da evolução, com o milagre da consciência na mão, egocêntrico e iludido o brinquedo acabará por ser extinguido.
Ah! Coitado do Homem, quebrado, incompleto, lindo. Imperfeito, descartável, inigualável. Destrutivo, indiferente, solidário. Carente, emotivo, afetivo. Inconsequentemente consciente, mas não eternamente.
Ah! Coitado do Homem.

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