sábado, 23 de março de 2013

O Faroleiro

Á minha volta, nada além de um silêncio sepulcral.Ouço minha respiração, lenta e apreensiva, que se condensa ao sair de minha boca. O ar, gelado e indiferente, parece carregar consigo cristais de gelo que apunhalam meus pulmões a cada inspiração. A neblina densa, é quase palpável, e ocupa o horizonte até onde a vista alcança, cobrindo tudo com um branco sinistro, que mal me permite enxergar as próprias mãos, conferindo à noite um ar sobrenatural.

As mãos, rijas e calejadas, reclamam a cada atar e desatar de nós, como se a pele e os músculos não mais existissem, deixando aos ossos todo o trabalho. Os cortes, como que feitos por milhares de pequenas navalhas tornam a abrir a cada movimento, mas já não sangram, como se o precioso líquido não mais corresse em minhas veias. Ainda assim me mantenho resoluto em meu curso, da forma como posso.

O pequeno navio em que me encontro claramente não foi projetado para uma situação dessas. Daí o motivo de tanta apreensão. Seus equipamentos de orientação de nada me servem, pois não me adianta saber onde é o Sul, o Norte, Leste ou Oeste, se não vejo a terra enquanto esta se aproxima perigosamente de mim. O rádio, só transmite estática, não sei se por defeito ou se por não haver mais ninguém ao seu alcance. Contando apenas com meus instintos, sigo em frente, esperando me aproximar logo da terra, onde um farol me guiará de volta à vida.

Noite afora, o espetáculo sinistro se mantém, alheio às minhas expectativas e esperanças, alheio à mim e meu pequeno barco, alheio à tudo e a si mesmo. A neblina parece formar uma tela branca e imaculada, perfeita e infinita no horizonte. E ainda assim pode-se perceber o céu, sem lua e nem estrela, preto como o breu, escondendo minha existência do resto mundo. A apreensão começa a tomar conta, meu destino é cada vez mais incerto, e o Universo parece regojizar da minha impotência, da minha insignificância.

Sinto que a terra perto, mas não vejo sinal de outras embarcações e muito menos a acalentadora luz do farol. Sozinho, derivo à esmo, em direção à minha salvação ou à minha perdição. O receio aumenta a cada minuto que o farol se omite, falhando em me alertar sobre a posição da costa. Terei eu desviado demais do caminho? Estarei eu, rumando para longe da terra? Minha mente começa a ser tomada por desespero.

Aos poucos, o silêncio arrebatador cede lugar a um leve som de arrebentação. Devo estar me aproximando da costa. Finalmente. Aliviado, espero avistar o farol em breve, e assim, logo estarei em segurança. O barulho da arrebentação se intensifica e consigo ver a espuma, formada pelo choque das ondas nos rochedos à minha volta. Devo estar mais perto do que imaginava. E nada do maldito farol aparecer.

De repente, perco meu equilíbrio e acabo arremessado, de cabeça, contra o leme do barco, abrindo um corte profundo. Ao mesmo tempo, um barulho aterrorizante e ensurdecedor indica que meu barco, arremessado contra as pedras, teve seu casco despedaçado, como se tivesse sido alvejado por balas de canhão,ficando preso, apoiado nos rochedos. Enquanto tento me recompor e me refazer do choque, o sangue jorra de minha testa como uma mangueira, ávida para apagar algum incêndio. Tonto e desnorteado, quase não percebo quando uma segunda onda, ainda maior do que a primeira, retira meu barco das pedras e o coloca gentilmente no mar, como um menino que, delicadamente, coloca um barco de papel na água que escorre pela sarjeta após um dia de chuva.

Assim, o desfecho de minha aventura se desenha claramente, e percebo que este culminará infalivelmente em meu fim, meu cessar de ser. Ao ser devolvido ao mar, o barco começa a afundar, e nada mais me resta senão aceitar meu destino e me render à morte. Parado na cabine, nada me passa na cabeça. Nenhum "flash" da minha vida. Não penso em meus erros, em meus acertos e nem nos assuntos não resolvidos. Neste momento derradeiro, o nada, e somente o nada, me vem à mente.

De repente, uma luz, clara como o Sol, me cega momentaneamente. O maldito farol agora está aceso e percebo que não estou muito distante dele. Mas não perto o suficiente para ser salvo. Mas agora que está aceso, vejo-o claramente. A confusão me toma a cabeça e imagino milhares de explicações para os acontecimentos que me levaram àquele momento. Mas nenhuma delas importa. Vou morrer. E é isto.

No topo do farol, surge uma figura improvável. Um homem com uma grossa capa de chuva amarela, acenando para mim. Parecemos estar tão perto, eu e ele, que sinto que quase posso tocá-lo. Aceno de volta, debilmente, por puro reflexo. Com a visão turva e a cabeça latejando, tombo no chão e não consigo mais distinguir água de sangue. Mas me levanto novamente, apoiado no leme e torno a olhar para o homem no farol. E algo me chama a atenção. O homem remove o capuz que lhe cobre o rosto denunciando o que parece ser um sorriso de satisfação, de contentamento.

Lutando contra a inconsciência, percebo que não sofri um acidente. O farol estava desligado propositadamente. Com a água já na altura de meu peito, me indago o motivo de tudo aquilo. Teria eu, feito algum mal para aquele homem, que agora parecia se deleitar com minha morte? Saberia ele quem sou eu? Seria ele apenas um louco, e eu apenas mais uma de suas vítimas? O barco afunda cada vez mais rápido, sendo constantemente testado contra as pedras, por ondas furiosas. Já quase totalmente submerso, com apenas a cabeça para fora d'água, olho uma última vez para o homem do farol. E mesmo fraco, tonto, já entregue à morte, olho dentro dos olhos do faroleiro e lhe marco as feições. E por fim, horrorizado, percebo que o faroleiro, sou eu.

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