Ah! Coitado do
brinquedo quebrado. O que há de errado com ele? Parece normal. Mas todos sabem,
quem o vê logo percebe, há algo errado, algo diferente, talvez algo inerente.
Ele já teve seu
auge, já esteve no topo. Costumava ser a primeira escolha do dia, antes da TV,
antes da bola, algumas vezes antes até do que o lanche da tarde. Antes do que o
lanche da tarde...Poucos conseguem tal honra, talvez o maior triunfo, o
maior sonho de qualquer brinquedo. Quem não gostaria de ser escolhido no lugar
do leite achocolatado e do pão com manteiga?
Agora, no entanto, apenas
ocupa espaço na estante de madeira, juntando poeira, olhando pro resto do quarto,
junto com todos os outros brinquedos. Esquecido, gasto, quebrado.
Passa o dia
todo olhando para o cômodo, imóvel e impotente, carente, descrente. Conhece, ou
pelo menos acha que conhece, cada detalhe do lugar. O tapete tem uma mancha de
sorvete de chocolate. O lixo foi trocado no dia anterior. Tem uma moeda caída
debaixo da cama há meses. A janela está emperrada. A tomada ao lado da cama não
funciona. Nada lhe escapa. Anota cada modificação, cada sinal de mudança, pois
nada mais lhe resta. Apenas esperando o dia da limpeza, temendo o dia em que
não mais terá nem valor sentimental o suficiente para ficar ali, onde qualquer
outra coisa poderia estar.
Ele teme, mas
no fundo se recusa a acreditar que seja descartável. Ele se acha importante,
não é igual aos outros brinquedos, o quarto em que se encontra não é a mesma
coisa sem ele. O quarto não é perfeito, algumas vezes é até meio estranho,
apresentando cada vez mais defeitos, menos tomadas funcionam, o ventilador já
não mais circula o ar, o papel de parede está desbotado, existem cada vez menos
brinquedos.
Mas ele, ele é
especial, ele é único, ele acredita cegamente nisso, ele tem plena consciência.
Afinal, muito já se passou no quarto desde que ele se lembra e ele continua lá.
As paredes já foram pintadas, a porta já foi trocada, o berço foi
substituído por uma cama, o carpete foi retirado, mas ele, ele sempre
esteve lá. Sem ele o quarto vai perder a identidade. Sem ele o quarto não tem
sentido. Sem ele o quarto não tem importância. Sem ele, o quarto simplesmente
não existe.
Ah! Coitado do
brinquedo quebrado, quebrado e iludido, preso na própria megalomania. aprisionado na própria consciência. No fim das contas, ele não é e nunca foi insubstituível,
O quarto pouco se importa com ele, sem ele o quarto continuará a existir, sem
ele o quarto ainda terá outros brinquedos, outros quadros, outros móveis,
outras pinturas de parede, outras portas, até que a casa inteira não mais seja.
Ah! Coitado do
brinquedo quebrado, no topo da evolução, com o milagre da consciência na mão,
egocêntrico e iludido o brinquedo acabará por ser extinguido.
Ah! Coitado do
Homem, quebrado, incompleto, lindo. Imperfeito, descartável, inigualável. Destrutivo,
indiferente, solidário. Carente, emotivo, afetivo. Inconsequentemente
consciente, mas não eternamente.
Ah! Coitado do Homem.
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